quarta-feira, 11 de maio de 2011

Morangos Flambados... numa manhã de outono.

Os raios de sol entravam pela janela da cozinha, e apenas tangenciavam o prato de vidro onde os morangos descansavam, majestosos em seu vermelho molhado.
Do cabelo displicentemente preso na nuca, escapavam umas mechas que lhe caíam sobre o rosto delicado e sobre os ombros nus, deixados a descoberto pela blusa branca. Acompanhava timidamente o bolero que tocava no rádio, cuja fascinação se tornava cúmplice de toda a euforia que a inebriava. Ele estava de passagem pela cidade e faria uma visita breve, apenas para matar a saudade dos beijos e juras de amor. Havia dois anos que se contentava com estes momentos fugazes, os quais se perpetuavam em recordações de risos, olhares, mãos e bocas se envolvendo, se confundindo até se tornarem um só. O cheiro da pele dele se impregnava na sua, e assim permanecia, tenuamente forte até ao próximo encontro.
Picou meia xícara de nozes, e reservou-as a um canto da mesa. Em seguida, com o pensamento transportado à expectativa do encontro e às lembranças que o envolviam, enquanto mergulhava as mãos na água límpida que escorria da torneira, lavou algumas folhas de hortelã, e reservou-as também. Numa panela pequena colocou três gemas, previamente passadas pela peneira, duas colheres (de sopa) de açúcar, uma colher (de café) de essência de baunilha, e uma xícara de creme de leite. Levou ao fogo até ferver, mexendo (sempre no sentido horário, em obediência ao ritual a que se entregava). Despejou serenamente o creme num prato fundo, verde, de porcelana.
Olhou a mesinha no pequeno jardim, coberta por uma toalha branca, e desenhou um sorriso nos lábios. No rádio, o bolero fora substituído por uma rumba que lhe dava cadência aos quadris.
Pegou uma frigideira, derreteu uma colher (de sopa) de manteiga, espalhou por ela os morangos cortados ao meio, acrescentou uma pitadinha de açúcar, esperou dois minutos, e regou-os com meia xícara de conhaque. Inclinou levemente a frigideira para que o fogo fosse atraído pelo álcool, e deixou que as chamas preenchessem toda a área interna do recipiente, flambando os morangos. Deliciava-se com a visão do calor alaranjado, enquanto a espera lhe aquecia a alma, fazendo todo o seu corpo arder de saudade e desejo.
Deitou os morangos sobre o creme branco, mas era para os lençóis brancos e para os prazeres que o aconchego destes lhe proporcionava que escapava o seu pensamento, na companhia do homem que se tornara dono do seu corpo e do seu coração. Polvilhou-os com as nozes picadas  e deu um toque final com as folhas de hortelã. Contemplou o prato, envaidecida pela obra-prima que acabara de criar.
O toque da campainha. É ele com certeza! (Na hora certa, porque este manjar precisa ser saboreado ainda quente). Solta os cabelos, segura o coração, e corre para a porta. Não sabe se ri, se chora, ou se permanece em silêncio, mas os seus olhos encontram nos dele e na mala que carrega, a promessa de que esta será apenas a primeira, entre tantas outra manhãs de outono, de uma vida a dois.

(É permitida a reprodução deste texto, desde que seja citada sua origem e autoria: www.sensibilidadeesabor.blogspot.com; Cris Palavras)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Aletria... no reencontro da adolescência.

Paula, minha inesquecível amiga,
não sei mais por onde anda você nem que pensamentos te povoam as horas. Não sei se mais de 30 anos se perderam, à deriva nos quilômetros que o oceano inundou entre nós, e agora, talvez com marido e filhos, rodeada de novas e grandes amigas, não há espaço para lembrar com carinho de um passado distante, lá onde a nossa história se escreveu, mas desejo, com toda a nostalgia que o tempo cobriu de pó durante tantos anos, que você ainda se lembre de mim e dos momentos, ora fúteis, ora enriquecidos por experiências relevantes, que compuseram os dias da adolescência que compartilhamos.
Desejo que, por esses inexplicáveis acasos, como aquele que nos aproximou na despedida de uma tarde de outono, meus passos, aqui traçados ansiosamente, cheguem a você, e sinta em seu coração o abraço das minhas palavras.
Tanto tempo se passou!... De meninas, envoltas na ânsia pueril da descoberta de novas emoções, e de nós mesmas, nos transformamos em mulheres um tanto ou nem tanto amadurecidas, e talvez ainda na busca da nossa essência e de nossos sonhos.
Eu tenho filhos que trouxeram à minha vida lágrimas e risos. Namorei muito e casei algumas vezes. Vários amigos foram acolhidos em meu coração ao longo desta trajetória, entre eles, uns ainda estão presentes no dia-a-dia e outros fazem parte apenas das minhas lembranças. Fui vitima de um acidente de carro, que me fez parar de dançar e me limita algumas possibilidades de deslocamento, mas que também me ajudou a enxergar novos valores, e como resultado da equação, este fato, que a principio parecia ter me limitado, se transformou numa parcela a somar ao que a vida tem me oferecido de bom, pois agradeço aos anjos tudo o que plantaram para mim e em mim, após o acidente. Encontrei alguns, (ou até muitos) obstáculos, alguns transpus com paciência e perseverança, de outros desviei circunstancialmente, esperando o amadurecimento necessário para enfrentá-los. Encaro tudo o que conquistei ou perdi, não como prêmios ou castigos, mas sim como uma conseqüência dos meus atos, embora me considere privilegiada pelas flores que pude ver florescer, e colher.
Se você conserva intacto, ou em pedaços que podem ser colados, o período que preenchemos juntas com risos e lágrimas, intercalado pela serenidade e euforia, provavelmente irá se lembrar dos momentos na cozinha, onde fazíamos da busca ao paladar um ritual de cumplicidade. Por isso, para te levar a um passeio por um desses momentos.
Publico aqui uma das nossas receitas favoritas, que me foi passada pela minha mãe, que recebeu da sua, e de não sei quantas mães antes desta.
Coloque 5 xícaras de água para ferver, com 11/2 colher (de sopa) de manteiga, uma pitada de sal, e casca de um limão (a casca deve ser retirada sem machucar o limão,para que depois o leite não coalhe). Junte 8 rolinhos de macarrão cabelo de anjo, e deixe ferver por 3 minutos. Acrescente 8 colheres (de sopa) de açúcar, e 3 xícaras de leite quente. Deixe cozinhar até que fique um creme. Separe as gemas de 4 ovos, bata-as com um pouco do caldo, para que estas não cozinhem, e junte-as ao creme, lentamente e mexendo sempre. Coloque o creme em pratos ou travessas e decore, polvilhando com canela em pó. (Você se lembra de que costumávamos escrever o nome daquele que era objeto da paixão de cada uma, no momento?)
Desejo que este legado de tantas gerações, traga envolvida pela sabor, a recordação daquilo que desfrutamos com todo o encanto da adolescência.
Ainda tenho muito que aprender, muito que retribuir, muito que concretizar, só peço a esses anjos tão generosos que iluminem meus sentimentos, meus pensamentos, minhas palavras e meus atos, para que eles me façam catalisadora de coisas boas, em retribuição ao que tenho recebido.
No remetente desta carta, mais do que um simples endereço para que você possa respondê-la, vai um convite a reatar velhos tempos, até onde a distância nos permite, e a semente da esperança de que o destino nos presenteie com o reencontro.
Muitos beijos, uma imensa saudade, e o mais eterno obrigada por você ter estado lá, naquele instante da minha vida.
(É permitida a reprodução deste texto, desde que seja citada sua origem e autoria: www.sensibilidadeesabor.blogspot.com; Cris Palavras)